Há artistas que pintam, outros que esculpem — e há aqueles raros criadores que recolhem fragmentos do mundo, reorganizando o próprio tempo. Jean-Charles de Ravenel é um desses artistas. O seu meio é a colagem, mas o que constrói aproxima-se mais de uma arqueologia do sonho: um universo onde os séculos se fundem num só olhar, onde o papel respira de novo, e onde a memória já não é linear, mas cíclica, íntima, viva.
Nascido em Paris em 1950, o percurso de Jean-Charles de Ravenel nas artes não começou com um pincel, mas com um olhar — um olhar aguçado por duas décadas no mundo das antiguidades, a procurar objetos raros, documentos esquecidos, sussurros de vidas passadas. A sua prestigiada galeria na Rue Jacob foi durante anos um templo dedicado a esses tesouros. Mas, um dia, o instinto de colecionador cedeu lugar a um chamamento mais profundo: não apenas preservar o passado, mas transformá-lo.
No seu ateliê, fragmentos da história espalham-se sobre uma grande mesa: gravuras botânicas do século XVIII, telegramas imperiais, fotografias desbotadas, convites para bailes há muito passados, mapas de mundos desaparecidos. Ravenel organiza-os não como relíquias estáticas, mas como partículas vivas de significado, movendo-os e virando-os até encontrarem o seu lugar — “como notas numa partitura secreta”, diz o autor. Cada colagem torna-se uma constelação de histórias, um equilíbrio delicado entre erudição e emoção, precisão e poesia.
Embora as suas obras partam frequentemente de reproduções de pinturas icónicas do Cubismo, do Suprematismo ou do Construtivismo, Ravenel não se limita a citá-las; ele apropria-se dessas imagens, desloca-as, fragmenta-as e sobrepõe-lhes documentos históricos originais — telegramas do século XIX, gravuras botânicas, convites imperiais — para construir uma nova narrativa visual, simultaneamente homenagem e reinvenção. Não há manipulação digital no seu processo: a sua prática é inteiramente manual e tátil, feita de cortes, colagens, sobreposições físicas e justaposições intuitivas. Cada colagem é, assim, um encontro singular entre a memória impressa e a matéria autêntica do tempo, onde a reprodução artística dialoga com o vestígio histórico, criando imagens que oscilam entre a citação, a memória e a criação pura. As suas obras não são apenas imagens; são repositórios de memória, camadas de histórias que convidam o espectador a entrar num labirinto de conexões.
Embora os seus materiais sejam retirados de épocas distantes — da Rússia Imperial, dos salões de Palm Beach, das expedições botânicas do século XIX — a sua sensibilidade é inegavelmente contemporânea. As suas composições vibram com a consciência de que a beleza não está confinada a um único momento, mas é tecida ao longo do tempo. Estar diante de uma das suas obras é vislumbrar uma dança entre passado e presente, um devaneio onde os fragmentos conversam, se contradizem e se completam.
Nesta nova série de trabalhos, Jean-Charles de Ravenel aventura-se por territórios ainda mais audazes, inspirando-se explicitamente no Cubismo de Picasso, Braque e Juan Gris, num diálogo íntimo com a decomposição da forma e a fragmentação do olhar. As suas colagens evocam os ritmos visuais das vanguardas do início do século XX, com sobreposições angulares, cortes abruptos e composições que alternam entre o plano pictórico e a profundidade ilusória. Cada obra surge como um eco contemporâneo da linguagem cubista, reinventada através da matéria histórica dos papéis antigos.
Mas o seu olhar vai além de Paris e da tradição ocidental. Ecoam também as influências do Suprematismo e do Construtivismo Russo, de artistas como Alexandre Vesnin, Ivan Puni, Rodchenko e Maiakovski, cujos experimentos visuais com a tipografia, a geometria e o espaço encontram ressonância na energia gráfica destas colagens. Jean-Charles de Ravenel absorve essa herança e transforma-a: incorpora a pureza das formas suprematistas, a audácia construtivista e a poesia revolucionária desses movimentos, criando composições onde o rigor geométrico se abre à delicadeza da memória e à exuberância da cor.
Num ecossistema imagético dominado pelo swipe e pela obsolescência on-demand, as colagens de Jean-Charles de Ravenel irrompem como palimpsestos de contra-fluxo: telegramas, mapas e gravuras oitocentistas são insetados em iconografias cubistas, suprematistas e construtivistas, e, nesse gesto háptico de corte e colagem, a superfície visual recupera densidade tátil e estratificação temporal. Ao friccionar matéria histórica contra a aceleração do agora, Ravenel implode a linearidade do presente e instaura um campo retro-futurista onde cada fragmento — simultaneamente citação e desvio — recorda que toda verdadeira inovação é um détournement da memória. Convidamo-lo a entrar neste mundo fascinante de fragmentos e fábulas. Descobrir a extraordinária alquimia de Jean-Charles de Ravenel é redescobrir o prazer do próprio espanto.
As colagens de Jean-Charles de Ravenel já conquistaram colecionadores e públicos em todo o mundo, de Nova Iorque a Los Angeles, de Palm Beach a Londres. Agora, pela primeira vez, Lisboa torna-se palco desta visão extraordinária. A exposição COLLAGES apresenta esta nova série de trabalhos, lado a lado com obras mais antigas, impregnadas de iconografia imperial, maravilhas botânicas e mapas de viagens impossíveis.
Cada colagem é um convite: olha mais de perto, sussurram. Segue os fios. Percorre os ecos. Imagina as histórias sob a superfície. Porque, nas mãos de Jean-Charles de Ravenel, a arte não é apenas uma imagem — é uma conversa entre séculos, uma meditação sobre a beleza, um lembrete de que o passado não está atrás de nós, mas dentro de nós, à espera de ser redescoberto.
Inauguração: 21 Maio, 18h.
Rui Freire – Fine Art
Rua Serpa Pinto 1
Chiado, Lisboa